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Resenha Crítica: Cercas

ANÁLISE/SINOPSE CERCAS

Por: Letícia Ferreira da Silva


O vencedor de Melhor filme e Direção do Curta Coremas 2022 e do prêmio Centauro de legendagem do Festival Curta Campos do Jordão 2022, Cercas do diretor Ismael Moura, traz uma narrativa sobre perda, solidão e resiliência. O curta possui 19 minutos, com direção de Ismael Moura, produção de Kalyne Almeida e Grão Cinema.

Cercas se passa em um cenário conhecido para quem acompanha as produções de Ismael Moura, o sertão. A narrativa se inicia com uma menina de rosto assustado (Bruna Castro) e respiração pesada, e nos primeiros minutos, já aparece arrastando um corpo. Corpo de quem? Até então não sabemos, mas entendemos nos primeiros instantes a dureza da obra, uma menina moça de poucos anos, puxa pelo chão de terra um corpo morto sem hesitar.

Na parede da casa de taipa, temos quadros religiosos, cenário comum para quem já viveu ou visitou uma casa de interior, a fé, assim como a cerca ou o cachorro, também protege no sertão. A menina retira os quadros e nos leva a pensar que talvez simbolize a perda da fé quando a vida parece judiar, mas ao amanhecer vimos na cama a criança agarrada nas imagens, em que mais se apegar?

Talvez o principal sentimento que Cercas nos passa é o de reconhecimento, seja pela casa iluminada só por velas, pelo terreiro vasto, pelas noites do interior com os barulhos de grilo e pássaros, tudo isso compõe um cenário conhecido e vivido pela maioria dos nordestinos.

Em uma narrativa solitária acompanhamos essa infância, sem pai, sem mãe, irmão ou gato, a menina não brinca, ela cozinha, busca água e descansa no chão sob o sol. A criança quase adolescente vive uma vida comum entre as meninas dos interiores do Brasil, sem boneca, assumem papel de donas de casa, cozinham, limpam e cuidam dos irmãos mais novos, e a perda da infância e ingenuidade ainda é elogiada “Fulana já faz tudo em casa, é uma mocinha”.

A única “boneca” que nos deparamos, é a galinha capturada, boneca é tomada como bicho ou brinquedo de estimação, companhia em uma vida tão só, é acariciada e alimentada com o pouco de comida que se tem. E não é esse o destino do pobre? Compartilhar o que não se tem? Multiplicar como a bíblia ensina e o rico esquece?

A solidão endurece, enquanto cantarola uma prece religiosa (para a alma do morto ou para ninar a si mesma?) a menina desenterra a cova e tira do corpo chinelos para si, entendemos que não se trata de indiferença, mas sim de instinto, quando se é pobre e só no mundo, o único caminho é sobreviver.

Quem chega? Pelas frechas da janela e do peito, a menina se encontra agora não mais só. Se assusta, mas não se esconde, enfrenta o grupo desconhecido com chinelo na mão para proteger a galinha de nome boneca. O grupo de cangaceiros é liderado pela atriz Zezita Matos, uma inversão de papéis pouco vista, onde a mulher conduz e é respeitada como líder. As cenas discorrem em diálogos poucos amistosos e de poucas falas, assim como na vida real, não se tem sorrisos fáceis ou palavras de acalento quando se leva uma vida árdua, ser entendido e entender é suficiente. Só descobrimos aqui, aos 11 minutos de filme que o corpo arrastado e enterrado sob a cruz improvisada com cactos, pertence a mãe da menina, e nesse mesmo instante descobrimos que a protagonista até então sem nome, se chama Maria.

O prato do dia é galinha, e mesmo subentendido que se trata de boneca, Maria não hesita e devora o pedaço magro de carne, a fome se sobressai, mastigar é sobreviver. Pela boca da cangaceira a menina escuta talvez o único conselho recebido em sua vida: “Quem tem medo se enterra vivo!”.

Em uma despedida eminente, a menina com olhar atento repara todos aqueles homens e mulheres desconhecidos, de rostos duros que ainda levam consigo a vaidade e a valentia. A jabiraca é enrolada no pescoço de Maria, e um embrulho é posto em suas mãos como quem entrega proteção e lembrança, o adeus é dado sem palavras, mas com um levantar de rosto e olhos nos olhos. Sem olhar pra trás os destinos cruzados se descruzam e seguem cada qual seu caminho com pegadas apagadas como quem diz: Trilha o teu. Do pacote, maria descobre uma rapadura e uma faca, talvez para um futuro com dias duros e frutos doces.

Como quem recebeu uma convocação do destino, a menina se prepara, determinada, arruma as vestes, protege pescoço e canelas, com a faca na bainha, copia a única referência que poderia, a única sina que lhe foi apresentada. E segue, segue em frente desbravando a mata seca até se deparar com a cerca, que rapidamente é desfeita e ultrapassada, fora da cerca maria continua a andar, e assim como aprendeu, não olha para trás, pois não há nada para se olhar.

Cercas é uma narrativa breve, mas profunda, que nos transporta para um cenário conhecido com personagens corriqueiros que possuem histórias desconhecidas. Quantas Marias existem e já existiram? Quantas meninas mulheres que com pouca idade precisam decidir o próprio futuro, não por opção, mas por obrigação de um destino que não escolheram? As cercas que arrodeiam casas e as cercas que nos prendem na vida, que sejamos todos Marias e possamos ultrapassá-las.



Texto: Letícia Ferreira

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